*Contém dados sobre o enredo.
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Capa para a primeira edição, publicada em 2001. |
O romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, tem como
base a relação de ódio entre dois irmãos gêmeos. Sugerido pelo título, o
confronto entre dois polos distintos se estende pelo romance, pautando as
relações entre os personagens e a construção do espaço onde a ação se
desenvolve.
A base do enredo é
o relacionamento conflituoso entre dois irmãos gêmeos. São eles Yaqub e Omar: o
primeiro, diligente e circunspecto, o segundo, boêmio e lascivo. Noutro plano,
o autor explora o princípio da dualidade por meio do espaço narrativo: as
diferenças entre a vida provinciana, representada pela decadência de Manaus, e
a pujança da metrópole, representada pelo progresso de São Paulo.
Partindo desta
premissa, Milton Hatoum vai construindo uma narrativa que acompanha a formação
da personalidade dos protagonistas a partir da dinâmica da vida familiar. Omar
e Yaqub fazem parte de um clã de origem libanesa que vive em Manaus. Isso serve
de pretexto para o autor introduzir elementos oriundos da rotina dos
imigrantes: do dia a dia no comércio às reminiscências do país de origem.
As lembranças da
terra natal, inclusive, podem ser apontadas como um dos temas essenciais do
romance de estreia do autor. Relato de um
certo oriente, publicado em 1989, apresenta a história de uma mulher que,
ao revisitar a cidade de sua infância após vinte anos de afastamento, tenta
reconstruir o próprio passado. A distância entre este romance e o segundo,
precisamente onze anos, foi importante para o autor. Hatoum costuma dizer que
“cada livro nos ensina a escrever”. Levando sua premissa ao pé da letra,
pode-se dizer que nenhum livro lhe ensinou tanto quando Dois irmãos. O romance apresenta uma escrita concisa e ao mesmo
tempo cheia de sutilezas e nuances:
[...]
Algo do comportamento dele me escapava; ele me deixou uma impressão ambígua, de
alguém duro, resoluto e altivo, mas ao mesmo tempo marcado por uma sofreguidão
que se assemelhava a uma forma de afeto.
A escrita é direta
(“duro, resoluto e altivo”), mas, justamente por conta de seu caráter objetivo,
consegue demarcar de forma clara os aspectos relacionados ao estado emocional
dos personagens (“marcado por uma sofreguidão que se assemelhava a uma forma de
afeto”). Em outro trecho, o narrador, que também faz parte da trama,
compartilha a angústia de não saber a identidade do pai:
[...] Perguntei à
minha mãe o que eles tinham conversado quando ele entrou no quarto dela. O que
havia entre os dois? Tive coragem de lhe perguntar se Yaqub era o meu pai.
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Hatoum mistura relato fragmentário à cultura amazonense para contar a história de um conflito que atravessa uma geração de um clã de imigrantes de origem libanesa. |
O narrador de Dois irmãos pode ser classificado como
narrador-testemunha. Isso porque seu relato privilegia a vida de outrem – os
gêmeos e os personagens que fazem parte do núcleo familiar. Durante a
narrativa, Nael associa episódios e cenas da vida familiar à sua busca pela
figura paterna. Por conta de sua natureza, o narrador apresenta uma visão
entrecortada dos acontecimentos, marcada por desvios temporais, avançando e
recuando em seu relato. Ora apresenta fatos importantes para o esclarecimento
da trama, ora os deixa em suspenso.
A partir deste
princípio de desconstrução cronológica, o romance começa com uma apresentação
onde é narrada a morte de Zana, a matriarca. Em situação de grande desespero,
ela encontra no silêncio a resposta para sua última pergunta: “Meus filhos já
fizeram as pazes?”. No primeiro capítulo, o narrador focaliza o retorno de
Yaqub após um exílio forçado no Líbano. O motivo de sua viagem é apresentado
por meio de mais um recuo temporal: na tentativa de evitar um conflito entre os
gêmeos, a separação acaba radicalizando as diferenças surgidas em tempos
remotos da infância – e que se acentuam ao longo de toda a narrativa.
O primeiro grande
confronto entre os gêmeos acontece durante uma sessão de cinema. Uma pane no
aparelho projetor coloca diante da plateia a imagem dos lábios de Lívia colados
ao rosto de Yaqub. A cena desperta o ciúme de Omar, que há tempos vinha disputando
a atenção da moça com o irmão. Num golpe de fúria, o caçula quebra uma garrafa
e ataca Yaqub. A cicatriz produzida pelo incidente o acompanha pelo resto da
vida, alimentando o rancor pela família e o ódio por Omar.
Percebendo o risco
da convivência entre os dois após o incidente, Halim decide enviar o filho mais
velho para uma aldeia remota no Líbano. Por insistência de Zana, o caçula
permanece em Manaus. Tendo de deixar a família e a cidade onde nascera, Yaqub
sofre a primeira grande derrota para o irmão. Ao retornar, ainda que modificado
pela vida rude e severa no interior da aldeia, o filho mais velho conserva o
sentimento de ódio pelo caçula.
Após o retorno,
Yaqub se dedica aos estudos e acaba por revelar-se um matemático de talento
promissor. Enquanto isso, Omar, que permanecera sob os cuidados e mimos
incessantes da mãe, mostra-se inquieto e indisciplinado.
A partir deste
ponto da narrativa, a presença dos gêmeos como duas forças opostas ganha ainda
mais ênfase. A dinâmica da vida familiar vai moldando as personalidades de Omar
e Yaqub, criando relações de identidade e aumentando as diferenças entre os
dois. As distâncias se acentuam quando Yaqub se muda para São Paulo com o
objetivo de aprimorar seus estudos. O conflito entre a cidade e a província se torna
claro durante uma conversa entre o filho mais velho e seu professor, o padre
Bolislau: “Se ficares aqui, serás derrotado pela província e devorado pelo teu
irmão.” Enquanto isso, Omar segue preso pelo ciúme doentio de Zana.
Superprotegido, fruto de uma criação indulgente e permissiva, o caçula
mostra-se indócil e desregrado.
Já em São Paulo,
Yaqub passa a se corresponder com a família por meio de cartas que, com o
passar do tempo, tornam-se cada vez mais lacônicas. Após formar-se em
engenharia, o filho mais velho prospera profissionalmente e casa-se com Lívia
(sem que seus pais tomem conhecimento da identidade da moça). Nesse ínterim,
Omar, entregue à boêmia, leva uma vida regada a festas e bebedeira. As mulheres
com quem o caçula se envolve despertam uma série de desentendimentos, que
culminam com sua partida para São Paulo. Durante um curto espaço de tempo, Omar
demonstra comportamento exemplar.
Logo depois, chega
a notícia do desaparecimento de Omar. Antes da fuga, porém, o caçula descobre a
identidade da esposa do irmão. Cego de ódio, ele cobre as fotos do casamento de
Yaqub com desenhos obscenos. Além disso, rouba-lhe o passaporte e uma grande
quantia em dinheiro.
A entrada dos
personagens na vida adulta é importante para confirmar os traços de personalidade
delineados nos primeiros capítulos do romance. Yaqub radicaliza sua timidez e a
converte em um hermetismo levado ao extremo. Suas opiniões e pensamentos quase
nunca são assimilados pelo narrador. Antes que alguém possa captá-los, o
personagem se deixa tomar pelo sentimento de rancor:
Zana
lhe perguntou por que a esposa não tinha vindo a Manaus, e ele apenas olhou
para a mãe, altaneiro, sabendo que podia irritá-la com o silêncio.
"Quer
dizer que não vou conhecer minha nora?", insistiu a mãe. "Ela está
com medo do calor ou pensa que somos bichos?"
"O
outro filho vai te dar uma nora e tanto", disse Yaqub, secamente.
"Uma nora tão exemplar quanto ele."
Zana
preferiu não responder.
Além do
amadurecimento dos protagonistas, outra transição importante para a construção
do enredo é a mudança de Yaqub para São Paulo. Na narrativa de Dois irmãos, a floresta e a metrópole
não servem meramente como pano de fundo, mas tornam-se personagens decisivos
dentro da dinâmica do romance. Ao mesmo tempo em que a ascensão de Yaqub é
fruto de investimento pessoal e do trabalho, São Paulo é representada como
símbolo do progresso e da prosperidade. Enquanto que, tanto para Omar quanto
para a cidade de Manaus, o passar dos anos resultou em ruína e decadência. Os
dias de glória do ciclo da borracha surgem como parte de um período luminoso,
reavivado pela memória de Halim, o líder do clã, e pelos relatos do narrador,
numa tentativa incessante de resgate do próprio passado.
Dentro desse
contexto, as recordações surgem como instrumento importante para a construção
das cenas. O uso da não-linearidade reforça o viés memorialista da narrativa.
Calcado nos relatos de Nael, o romance ora expõe os acontecimentos, ora os
deixa em suspenso. Os problemas são revelados ao leitor aos poucos, conforme o
narrador rememora fatos esclarecedores e os encadeia para solucionar os enigmas
da história.
Outro aspecto
importante é o estilo enxuto com que Hatoum compõe seu texto. A forma direta
com que autor expõe os fatos não esconde seu domínio sobre a técnica da ficção.
Temas como o incesto, a rivalidade e o ciúme surgem atreladas às imagens sutis
que o autor produz com o uso da linguagem.
Obra de qualidades
raras, Dois irmãos pode ser lida como
uma espécie de fábula arquetípica sobre o ódio, em que o confronto entre dois
gêmeos nos remete aos mitos da Antiguidade. A presença dos dois protagonistas
em oposição reflete com clareza a noção dualidade, atuando como motor das
intrigas que movem a narrativa. Noutro plano, há de se destacar a dimensão
alegórica do livro, que transforma os irmãos em disputa, Omar e Yaqub, em
emblemas de "dois Brasis" que jamais se reconciliam. Todas as
leituras são pertinentes. Mais que isso, elas se completam.