sábado, 22 de dezembro de 2012

João Antônio em edição imperdível

Contos reunidos traz textos
inéditos do autor e encarte
com manuscritos
“João Antônio faz para as esferas malditas da sociedade urbana o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elabora uma linguagem que parece brotar espontaneamente do meio em que é usada,mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de uma estilização eficiente”. É o que diz Antonio Candido na quarta capa da edição primorosa que acaba de ser lançada pela Cosac Naify.

Para além das qualidades literárias do texto, o que chama a atenção nesta edição é a beleza do projeto gráfico e o acabamento impecável. O volume traz uma série de ilustrações baseadas em material de arquivo do próprio autor. São manuscritos, bilhetes de loteria, anotações em versos de maço de cigarro. Além disso, foi incluído um livreto intitulado Vocabulário das ruasuma caderneta de endereços e telefones onde autor registrava gírias e expressões que ouvia em seu trânsito pelos ambientes que frequentou.



"Valsa Negra": entre a paranoia e a obsessão

Edição publicada pela Rocco.
Patrícia Melo despontou em meados da década de 1990 como um dos grandes nomes da ficção brasileira contemporânea. Suas narrativas ágeis, instantâneas, aliadas ao despojamento da forma e às frases de estrutura concisa, atigiram o auge com a publicação de O Matador (1995).

As marcas de sua experiência como roteirista de cinema e TV estão latentes nos cortes rápidos das cenas e na fala sempre caótica dos narradores. Em Valsa Negra, romance de 2003, o relato obssessivo de um maestro toma o lugar dos narradores marginais de seus romances de estreia. 

Como sugere na epígrafe — "O ódio é indistinguível do amor" (que a autora foi buscar em Catulo, poeta romano de um período anterior à era cristã) —, o romance se debruça sobre a relação doentia entre um maestro de meia-idade e uma musicista. O ciúme e a obsessão deflagram uma série que crises que resultam no relato do narrador (o próprio maestro). Entre referências à literatura, música erudita, judaísmo e cultura pop, o romance investiga a passionalidade, a paranoia e a miséria existencial.

A mudança do espaço narrativo poderia indicar uma tentativa da autora de dar novos ares à sua obra. Pouco depois da publicação do romance, o namoro entre Patrícia e John Neschling (na época diretor artístico da OSESP), ajudou  a aguçar a curiosidade dos jornalistas e foi usada por alguns como estratégia de marketing: seria Valsa Negra um roman à clef* sobre a fogueira de vaidades nos bastidores da orquestra paulista?

Se o romance é espelho da rotina e dos conflitos de uma orquestra real ou não, jamais saberemos. O fato é que, apesar do abismo que separa os narradores marginais de Patrícia do maestro esnobe que vemos em Valsa Negra, a personalidade conturbada pode ser apontada como traço comum. Além disso, as relações obsessivas e o relato paranoico são dois expedientes comuns nos romances da autora que retornam nesta narrativa.

No entanto, ao centralizar o enredo no universo da cultura erudita, Patrícia deixa transparecer certas fragilidades. Problemas nos diálogos e personagens revelam que a elaboração do romance se deu sobre terreno movediço. Talvez o maior equívoco esteja no personagem principal, cujo nome perpassa a narrativa sem ser revelado. Homem divorciado, provavelmente quarentão, bem-sucedido, egocêntrico, ciumento e perturbado. A própria capacidade de se prender a um estereótipo poderia servir de argumento para revelar fragilidades dos personagens. Mas autores como Dickens e Naipaul souberam provar que o conflito entre personagem plano versus redondo não é critério absoluto para valoração de um texto.

A graça dos personagens de Patrícia está justamente em, após uma apresentação superficial e estereotipada, eles revelarem, por meio de um relato desajustado e paranoico, traços de humanidade e empatia. Em Valsa Negra, eles parecem não mais que o resultado de um retrato caricatural das elites.

As elites em Valsa Negra parecem saídas de um roteiro de telenovela. Composta majoritariamente de judeus esnobes e discretíssimos, ela perambula por jantares, cidades europeias, lojas de grife e hoteis do bairro paulistano dos Jardins. A autora chega a citar o nome das ruas e a numeração dos endereços por onde os personagens transitam. O expediente que ajudaria a dar às situações um caráter mais crível parece perdido em uma atmosfera de esvaziamento e frivolidade.

Alguns trechos revelam certa graça, mas a maioria repisa conceitos já trabalhados pela autora em outros romances. As reflexões sobre a degradação urbana e as diferenças sociais soam ocas, como uma tentativa frustada de fazer experiências sensoriais ou plásticas dentro do texto:


Nenhuma árvore, só asfalto. Não eram nem dez da manhã, e o relógio do estádio do Pacaembu marcava vinte e sete graus. O verão paulistano é de fato uma coisa terrível. Mal o sol desponta, a cidade já recomeça a apodrecer bem diante de nossos olhos. Tudo é fermentável, efervescente e fétido no calor, nem sequer de noite, quando sopra uma brisa morna ou despenca um temporal, é possível deixar de sentir os odores malcheirosos da metrópole. Só mesmo uma grande cidade como São Paulo é capaz de feder e apodrecer dessa maneira tão escandalosa. As feiras livres e as toneladas de lixo que botamos nas ruas se encarregam de potencializar as emanações pestilentas. [...]


A fragilidade está justamente em tentar aliar a fala informal dos personagens típicos da autora ao repertório erudito do maestro que ela tenta construir. O discurso de execração da  paisagem urbana soa um tanto falso quando temos expressões como "emanações pestilentas" inseridas na fala antes franca e despojada do narrador.

Um recurso de avaliação seria interpretar Valsa negra como um livro de transição, experimental: uma tentativa da autora de expandir sua técnica de escrita transferindo-a para um universo oposto. O resultado, infelizmente, fica muito aquém do apresentado por textos como Inferno (espécie de "romance de personagem" e retrato da criminalidade nas favelas cariocas) e o excelente O matador. Neste livro, sem dúvida, Patrícia Melo passa longe do êxito narrativo.



* Expressão francesa que designa a forma narrativa na qual o autor trata de pessoas reais por meio de personagens fictícios.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

"Dois Irmãos": conflito e dualidade*

*Contém dados sobre o enredo.

Capa para a primeira edição,
publicada em 2001.
O romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, tem como base a relação de ódio entre dois irmãos gêmeos. Sugerido pelo título, o confronto entre dois polos distintos se estende pelo romance, pautando as relações entre os personagens e a construção do espaço onde a ação se desenvolve.

A base do enredo é o relacionamento conflituoso entre dois irmãos gêmeos. São eles Yaqub e Omar: o primeiro, diligente e circunspecto, o segundo, boêmio e lascivo. Noutro plano, o autor explora o princípio da dualidade por meio do espaço narrativo: as diferenças entre a vida provinciana, representada pela decadência de Manaus, e a pujança da metrópole, representada pelo progresso de São Paulo.

Partindo desta premissa, Milton Hatoum vai construindo uma narrativa que acompanha a formação da personalidade dos protagonistas a partir da dinâmica da vida familiar. Omar e Yaqub fazem parte de um clã de origem libanesa que vive em Manaus. Isso serve de pretexto para o autor introduzir elementos oriundos da rotina dos imigrantes: do dia a dia no comércio às reminiscências do país de origem.

As lembranças da terra natal, inclusive, podem ser apontadas como um dos temas essenciais do romance de estreia do autor. Relato de um certo oriente, publicado em 1989, apresenta a história de uma mulher que, ao revisitar a cidade de sua infância após vinte anos de afastamento, tenta reconstruir o próprio passado. A distância entre este romance e o segundo, precisamente onze anos, foi importante para o autor. Hatoum costuma dizer que “cada livro nos ensina a escrever”. Levando sua premissa ao pé da letra, pode-se dizer que nenhum livro lhe ensinou tanto quando Dois irmãos. O romance apresenta uma escrita concisa e ao mesmo tempo cheia de sutilezas e nuances:

[...] Algo do comportamento dele me escapava; ele me deixou uma impressão ambígua, de alguém duro, resoluto e altivo, mas ao mesmo tempo marcado por uma sofreguidão que se assemelhava a uma forma de afeto.


A escrita é direta (“duro, resoluto e altivo”), mas, justamente por conta de seu caráter objetivo, consegue demarcar de forma clara os aspectos relacionados ao estado emocional dos personagens (“marcado por uma sofreguidão que se assemelhava a uma forma de afeto”). Em outro trecho, o narrador, que também faz parte da trama, compartilha a angústia de não saber a identidade do pai:

[...] Perguntei à minha mãe o que eles tinham conversado quando ele entrou no quarto dela. O que havia entre os dois? Tive coragem de lhe perguntar se Yaqub era o meu pai.


Hatoum mistura relato fragmentário à cultura
amazonense para contar a história de um
conflito que atravessa uma geração de um
clã de imigrantes de origem libanesa.
O narrador de Dois irmãos pode ser classificado como narrador-testemunha. Isso porque seu relato privilegia a vida de outrem – os gêmeos e os personagens que fazem parte do núcleo familiar. Durante a narrativa, Nael associa episódios e cenas da vida familiar à sua busca pela figura paterna. Por conta de sua natureza, o narrador apresenta uma visão entrecortada dos acontecimentos, marcada por desvios temporais, avançando e recuando em seu relato. Ora apresenta fatos importantes para o esclarecimento da trama, ora os deixa em suspenso.

A partir deste princípio de desconstrução cronológica, o romance começa com uma apresentação onde é narrada a morte de Zana, a matriarca. Em situação de grande desespero, ela encontra no silêncio a resposta para sua última pergunta: “Meus filhos já fizeram as pazes?”. No primeiro capítulo, o narrador focaliza o retorno de Yaqub após um exílio forçado no Líbano. O motivo de sua viagem é apresentado por meio de mais um recuo temporal: na tentativa de evitar um conflito entre os gêmeos, a separação acaba radicalizando as diferenças surgidas em tempos remotos da infância – e que se acentuam ao longo de toda a narrativa.

O primeiro grande confronto entre os gêmeos acontece durante uma sessão de cinema. Uma pane no aparelho projetor coloca diante da plateia a imagem dos lábios de Lívia colados ao rosto de Yaqub. A cena desperta o ciúme de Omar, que há tempos vinha disputando a atenção da moça com o irmão. Num golpe de fúria, o caçula quebra uma garrafa e ataca Yaqub. A cicatriz produzida pelo incidente o acompanha pelo resto da vida, alimentando o rancor pela família e o ódio por Omar.

Percebendo o risco da convivência entre os dois após o incidente, Halim decide enviar o filho mais velho para uma aldeia remota no Líbano. Por insistência de Zana, o caçula permanece em Manaus. Tendo de deixar a família e a cidade onde nascera, Yaqub sofre a primeira grande derrota para o irmão. Ao retornar, ainda que modificado pela vida rude e severa no interior da aldeia, o filho mais velho conserva o sentimento de ódio pelo caçula.

Após o retorno, Yaqub se dedica aos estudos e acaba por revelar-se um matemático de talento promissor. Enquanto isso, Omar, que permanecera sob os cuidados e mimos incessantes da mãe, mostra-se inquieto e indisciplinado.

A partir deste ponto da narrativa, a presença dos gêmeos como duas forças opostas ganha ainda mais ênfase. A dinâmica da vida familiar vai moldando as personalidades de Omar e Yaqub, criando relações de identidade e aumentando as diferenças entre os dois. As distâncias se acentuam quando Yaqub se muda para São Paulo com o objetivo de aprimorar seus estudos. O conflito entre a cidade e a província se torna claro durante uma conversa entre o filho mais velho e seu professor, o padre Bolislau: “Se ficares aqui, serás derrotado pela província e devorado pelo teu irmão.” Enquanto isso, Omar segue preso pelo ciúme doentio de Zana. Superprotegido, fruto de uma criação indulgente e permissiva, o caçula mostra-se indócil e desregrado.

Já em São Paulo, Yaqub passa a se corresponder com a família por meio de cartas que, com o passar do tempo, tornam-se cada vez mais lacônicas. Após formar-se em engenharia, o filho mais velho prospera profissionalmente e casa-se com Lívia (sem que seus pais tomem conhecimento da identidade da moça). Nesse ínterim, Omar, entregue à boêmia, leva uma vida regada a festas e bebedeira. As mulheres com quem o caçula se envolve despertam uma série de desentendimentos, que culminam com sua partida para São Paulo. Durante um curto espaço de tempo, Omar demonstra comportamento exemplar.

Logo depois, chega a notícia do desaparecimento de Omar. Antes da fuga, porém, o caçula descobre a identidade da esposa do irmão. Cego de ódio, ele cobre as fotos do casamento de Yaqub com desenhos obscenos. Além disso, rouba-lhe o passaporte e uma grande quantia em dinheiro.

A entrada dos personagens na vida adulta é importante para confirmar os traços de personalidade delineados nos primeiros capítulos do romance. Yaqub radicaliza sua timidez e a converte em um hermetismo levado ao extremo. Suas opiniões e pensamentos quase nunca são assimilados pelo narrador. Antes que alguém possa captá-los, o personagem se deixa tomar pelo sentimento de rancor:

Zana lhe perguntou por que a esposa não tinha vindo a Manaus, e ele apenas olhou para a mãe, altaneiro, sabendo que podia irritá-la com o silêncio.
"Quer dizer que não vou conhecer minha nora?", insistiu a mãe. "Ela está com medo do calor ou pensa que somos bichos?"
"O outro filho vai te dar uma nora e tanto", disse Yaqub, secamente. "Uma nora tão exemplar quanto ele."
Zana preferiu não responder.


Além do amadurecimento dos protagonistas, outra transição importante para a construção do enredo é a mudança de Yaqub para São Paulo. Na narrativa de Dois irmãos, a floresta e a metrópole não servem meramente como pano de fundo, mas tornam-se personagens decisivos dentro da dinâmica do romance. Ao mesmo tempo em que a ascensão de Yaqub é fruto de investimento pessoal e do trabalho, São Paulo é representada como símbolo do progresso e da prosperidade. Enquanto que, tanto para Omar quanto para a cidade de Manaus, o passar dos anos resultou em ruína e decadência. Os dias de glória do ciclo da borracha surgem como parte de um período luminoso, reavivado pela memória de Halim, o líder do clã, e pelos relatos do narrador, numa tentativa incessante de resgate do próprio passado.

Dentro desse contexto, as recordações surgem como instrumento importante para a construção das cenas. O uso da não-linearidade reforça o viés memorialista da narrativa. Calcado nos relatos de Nael, o romance ora expõe os acontecimentos, ora os deixa em suspenso. Os problemas são revelados ao leitor aos poucos, conforme o narrador rememora fatos esclarecedores e os encadeia para solucionar os enigmas da história.
Outro aspecto importante é o estilo enxuto com que Hatoum compõe seu texto. A forma direta com que autor expõe os fatos não esconde seu domínio sobre a técnica da ficção. Temas como o incesto, a rivalidade e o ciúme surgem atreladas às imagens sutis que o autor produz com o uso da linguagem.

Obra de qualidades raras, Dois irmãos pode ser lida como uma espécie de fábula arquetípica sobre o ódio, em que o confronto entre dois gêmeos nos remete aos mitos da Antiguidade. A presença dos dois protagonistas em oposição reflete com clareza a noção dualidade, atuando como motor das intrigas que movem a narrativa. Noutro plano, há de se destacar a dimensão alegórica do livro, que transforma os irmãos em disputa, Omar e Yaqub, em emblemas de "dois Brasis" que jamais se reconciliam. Todas as leituras são pertinentes. Mais que isso, elas se completam.

domingo, 15 de julho de 2012

Infância: cenas da vida na província

O intuito do blog não é falar de lançamentos, exclusivamente. Essa resolução leva em conta a imensa variedade de títulos lançados a cada mês, sendo praticamente impossível avaliá-los com qualidade e de forma criteriosa, analisando com cuidado os atributos de cada texto. Portanto, antes de serem resenhas, grande parte do que será publicado reflete o prazer obtido por meio de determinadas leituras. Escolhidas seja pelo interesse prévio ou pelos comentários ouvidos de gente que também aprecia bons livros. Hoje, um texto de J. M. Coetzee,  escritor sul-africano ganhador do Nobel de Literatura em 2003. Trata-se do volume de estreia de sua trilogia autobiográfica. Os subsequentes Juventude e Verão serão discutidos em outra oportunidade.

Capa para a coleção de bolso da Companhia das Letras,
o desenho é do australiano Jeff Fisher
Em Infância, o autor transforma a banalidade do cotidiano em matéria-prima para o resgate de um período obscuro de sua trajetória pessoal. Abrindo mão dos eufemismos, uma época que para a maioria das pessoas é vista de forma colorida e vivaz adquire ares soturnos.

Através da marca que Coetzee imprime a seus textos — sempre conciso, demonstrando precisão e grande domínio técnico sobre a narrativa — o leitor é convidado a compartilhar da infância atormentada de um menino: das diferenças de costume entre ingleses e nativos; da violência que permeia o dia a dia na escola; da sensação de sufocamento decorrente da superproteção da mãe; e da repulsa pela figura paterna.

A construção da identidade é o tema central deste livro, cuja clareza nas descrições acaba levando o leitor a perceber um conflito entre autor e narrador: vemos o protagonista e sua existência devassados por um narrador que, inevitavelmente, não é nada além de uma extensão de seu autor.

Durante todo o livro, as contradições decorrentes da formação da personalidade são expostas com crueza e autoconsciência assustadoras. O domínio que o narrador demonstra durante a construção da história contrasta com a mentalidade ora ingênua, ora maliciosa, de John. Cada passo é calculado, de forma que é difícil saber até que ponto a maturidade de uma criança não guarda ecos das experiências vividas pelo próprio autor já em sua fase adulta.

Infância é costurado por uma série de episódios decisivos para a definição do caráter de uma criança, e para o estabelecimento dos limites em seu relacionamento em família. A mãe e o pai são mostrados como figuras abstratas e incoerentes, perdidas em meio a um casamento despedaçado. A rotina de ódio e brutalidade que acompanha a vida na província parece se estender ao convívio doméstico. O sentimento de estranheza em relação à mãe e o desprezo pelo pai são reflexos daquele modo de viver. Hostil, seco, rude.

Um dos trechos mais comoventes — e belos — de Infância aparece ainda no começo do livro, quando o protagonista se assusta com a ameaça que uma bicicleta impõe ao sentimento de exclusividade que ele reivindica em relação à mãe:

No começo, ele achou maravilhoso que a mãe possuísse uma bicicleta. Chegou a imaginar os três pedalando pela Avenida dos Choupos — ela, ele e seu irmão. Mas agora, ouvindo as piadas do pai, que a mãe retribui apenas com um silêncio obstinado, começa a hesitar. Mulheres não andam de bicicleta — e se o pai tiver razão? Se a mãe não encontrar alguém disposto a ensiná-la, se nenhuma outra dona de casa de Reunion Park tiver uma bicicleta, talvez as mulheres não devam andar de bicicleta.

No quintal atrás da casa, a mãe tenta aprender sozinha. Com as pernas estendidas até o chão, ela roda pelo caminho que vai até o galinheiro. A bicicleta se inclina e para. Como o modelo não tem o cano do meio, ela não cai, só tropeça um pouco de um jeito bobo, agarrada ao guidom.

O coração dele se volta contra ela. Naquela noite, junta-se ao pai na zombaria. Sabe muito bem que é traição. Agora a mãe está sozinha.


Para fugir da dureza do mundo e do deslocamento em relação a si mesmo e aos outros, John encontra abrigo na introspecção, fazendo com que o leitor compartilhe da construção de sua personalidade fechada e solitária. Assim, a narrativa se constrói a partir da amargura que contamina as lembranças do protagonista. É como diz o narrador: "[...] se ele não lembrar, quem o fará?"

Pós-Flip: Capas para Drummond

Já era de se esperar que, com sua obra relançada este ano e tendo sido o escritor homenageado na FLIP, o poeta mineiro teria destaque nos lançamentos das semanas pós-festival. Abaixo, capas para as sete faces de Carlos Drummond de Andrade:


Poesia 1930-62. Capa modernista para a edição crítica da Cosac Naify. 



Design minimalista da warrakloureiro para José — seleção de doze poemas, incluindo o que dá título ao livro. 



Capa para As Impurezas do Branco, também da warrak, segue a linha fundo branco, recorte de uma obra de arte e tipos bastonados no título e no nome do autor. Discretas, as peças criadas para a coleção seguem a linha de modernização dos projetos gráficos para edições de autores brasileiros — algo que a Companhia das Letras já vinha fazendo com as coleções de Jorge Amado e Lygia Fagundes Telles.



A Cosac ainda selecionou 25 poemas inéditos do escritor mineiro num belo volume de capa dura. A cor vibrante e o recorte da tipografia ajudam a preencher um projeto com poucos elementos. Mais um daqueles pequenos mimos feitos para enfeitar estante — e encher os olhos de qualquer designer.

domingo, 29 de abril de 2012

A fantástica fábrica de livros

Em meio a um cenário surrealista, repleto de xícaras e seres incomuns, pode-se dizer que nem Lewis Carroll imaginaria um universo tão lúdico e cheio de signos quanto o que a Penguin Books tenta emular em seu novo vídeo publicitário.

Sob o slogan "Find a book and lose yourself" (Encontre um livro e se perca), o pinguim  mundialmente famoso passeia por um território que reverencia a experiência subjetiva da leitura, e onde imaginação é palavra de ordem.

sábado, 28 de abril de 2012

No panteão das artes gráficas

Sempre fui fã do trabalho de João Baptista da Costa Aguiar. Desde que comecei a estudar produção editorial, o trabalho dele foi — sem sombra de dúvida — o que sempre me causou maior impacto.

João Baptista da Costa Aguiar 
- Desenho Gráfico (1980-2006), 
publicado pela Editora 
Senac São Paulo
Foi através de uma pesquisa envolvendo as criações de artistas gráficos brasileiros para um trabalho acadêmico que entrei em contato com o livro João Baptista da Costa Aguiar — Desenho gráfico (1980-2006), publicado pela Editora Senac. Desde então, fico cada vez mais fascinado pela capacidade de criação que sua obra gráfica apresenta.

Tudo porque, além da inventividade representada em produções como as capas para A Marca Humana, do norte-americano Philip Roth, e Timbuktu, de Paul Auster, podemos conhecer melhor o repertório por trás das obras deste artista gráfico: os critérios levados em conta durante a concepção de um projeto, além das interferências que ocorrem durante o trabalho com design editorial — no que diz respeito à relação entre autor, editor e artista gráfico (inserida nos procedimentos que fazem parte da rotina do processo de produção de um livro). 

No trabalho de João Baptista, nota-se um talento especial na concepção de projetos para coleções literárias. Para cada autor, uma padrão gráfico diferente — ora levando em conta a subjetividade, ora apresentando um discurso que conceitue determinado projeto. É o que acontece com a capa produzida para Um Crime Delicado, do escritor carioca Sérgio Sant'Anna. O designer parte do enredo, centrado no universo da indústria cultural, e que tem como personagens um crítico de arte, um artista plástico e uma modelo. 


Desde a criação da capa para A Marca Humana
projeto editorial para as traduções dos livros
 de Roth segue o padrão de manchas.






Para Timbuktu, um osso
em forma de T sugere um
movimento ascendente.
Referência ao cão que dá
título ao livro e a um espaço
imaginário, espécie de paraíso
em que cães e humanos
falariam a mesma língua.













Ainda sobre Um Crime Delicado, cuja capa se apropria da pintura Pigmaleão e Galatéia (1860), do francês Jean-Léon Gerôme, faz-se referência ao caráter perverso e amoral dos personagens. Na quarta-capa, a tela As Meninas (1656), objeto de análise de centenas de estudos teóricos (e imagem-cânone da pintura ocidental), é exposta dentro de uma moldura dourada. Completa-se, então, o jogo de imagens, que brinca com as diversas interpretações dedicadas à obra do espanhol Diego Velázquez.


Capa para Um Crime Delicado,
que se apropria do repertório
de acadêmicos e críticos de 
arte para representar uma 
história ambientada no universo
da indústria cultural.














Discursos de menor complexidade também podem render bons projetos. É que se vê na série de logos criada para a Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo (1989-1992) e nos selos criados para a editora Companhia das Letras, com vinhetas e desenhos que ilustram uma concepção de design baseada no figurativismo. Vale comentar ainda os bons exemplos de combinação tipográfica nas capas criadas para a coleção Jornalismo Literário, em que Baptista abusa do conhecimento da tipografia, adquirido na época em que pintava os letreiros de programas da extinta TV Tupi.

Série de logotipos para a SMC se vale da associação de ícones a um tema específico. Para espetáculos de dança, a imagem de uma bailarina; para literatura, o rosto do escritor Oswald de Andrade. Este conceito de design figurativo já havia sido utilizado três anos antes nos selos da editora Companhia das Letras.

Marcado pela linguagem dos cartazes de rua, o trabalho de João Baptista da Costa Aguiar representa a força criativa das artes gráficas no Brasil — por meio de um trabalho com forte marca pessoal, fugindo dos cânones funcionalistas do design gráfico brasileiro.